13.6.10

Tempo

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Às 10h30, Flávia se levantou. Quando acordou, pensou ser um dia como outro qualquer. Mas não seria. Após dormir putíssima no quarto de empregada porque todas as camas da casa, inclusive a sua, estavam ocupadas por pessoas embriagadas, foi acordada por essas mesmas pessoas, que não mais estavam embriagadas às 10h daquele sábado.
Ligou a televisão, o jogo da Argentina ainda não havia começado - era só às 11h. Aproveitou pra lavar o rosto e comer qualquer preenche-estômago. Pegou no quarto o cobertor laranja e se jogou no sofá. 1x1. Pensou em fazer seu próprio almoço. Tomou banho, um longo banho. Aproveitou a água quente do banho pra encher uma bacia, onde posteriormente mergulharia as mãos e passaria alicate nas cutículas enquanto assistia tv. Vida banal. Já sentia fome demais pra pensar em cozinhar qualquer coisa. Esquentou um pedaço da lasanha velha da geladeira. Nervos à flor da pele, deu um chilique. Não aguentava mais a falta de objetivo na vida.
Pegou a bicicleta na garagem e desceu oito quadras pra assistir o primeiro tempo de Inglaterra x EUA com elas. Foram comer feijoada no restaurante; Flávia foi pra assistir o segundo tempo. 1x1. Muito frio no Brasil.
Voltou pra casa, pegou a mãe no contrapé. Vem aqui, deixa eu te mostrar. Comprou passagens internacionais de ida e volta. Um mês e cinco dias fora deveriam lhe servir pra botar rumo na vida. Ou pra tirar de vez, mas essa não era a ideia. Fez reservas e escreveu emails de consulta. Se animou.
Foi pro boteco onde estavam elas. Comeu. Quase não bebeu. Conversou, se animou. Contestou. Foi contestada. Fez piada. Riu de piada. Anseou pela viagem. Planejou. Não hesitou. Recebeu uma mensagem no celular. Se chocou. Não soube o que fazer. Nunca sabia o que fazer. Na verdade, não havia nada que pudesse fazer.
Não dormiu. Quis chorar. Quis chamar, não podia. Era alheia à história. Alheia, não indiferente. Mas não deveria ser ela a pessoa a contar. Imaginou muitas coisas. Cogitou outras mil. Não quis. Se preocupou. Quis poder ajudar. Quis poder. Quis.
Quis, mas não era ninguém. Não era nada pra ninguém, nem tinha a pretensão de sê-lo: os is estavam todos pingados, e nenhum respingava nela. Mas se preocupou, como se preocuparia com qualquer outra pessoa querida.

Você não gosta de dar trabalho. Dar trabalho, eventualmente, é inevitável. Não é meu o ombro que você vai escolher pra chorar, mas eu certamente espero que você escolha algum. Só me prometa chorar. Porque as lágrimas, elas nunca são desejadas, mas quase sempre são necessárias. Você me ensinou isso no dia em que eu me senti patética por desabar na sua frente.

Flávia acordou pensando ser só mais um dia do mês. Mas não foi. Nem pra ela, nem pra ninguém.

9.6.10

Atroz

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Ontem à noite, eu passei pelo parque e te vi comendo um punhado de florezinhas. Não, não comendo. Cheirando. Você estava de shorts e moletom de capuz, devia estar marcando uns 15 graus. Você é tão fodona, tão durona, que eu jamais pensaria que você cheira flores. Que dirá rosas. Rosas têm um cheiro denso e enjoado de nada. Só as rosas rosa, algumas delas, têm aquele cheiro doce que todo o mundo acha que têm as rosas. Você até parecia dócil segurando aquelas flores. Tinha acabado de chover e tudo cheirava a lama, no final das contas. Até as rosas. Seus tênis de caninho estavam enlamaçados, e até sua meia branca estava respingada de barro. Você tremia, esfregando uma à outra essas duas toras que você chama de pernas. Pernas de bicicleta. Eu julgaria ser um menino, se não fosse você a única pessoa na cidade a usar esse moletom laranja, portanto só podia ser você. Até aí, você sempre parece um menino pra quem vê com olhos distantes. Mas eu sei que por dentro você é uma mocinha, frágil e delicada. Tão frágil, tão quebrável, tão de vidro. Você queria ser blindada, mas não é, então anda sempre de guarda alta pra parecer forte. Mas isso é só mais uma fraqueza sua.
Andei devagar em sua direção. Meus pés faziam splash splosh na grama que já não era mais verde. À contra-luz, não pude ver seu rosto, só vi que você tremeu na base. Ameaçou ir embora. Que medo o meu de ter pensando esse monte de coisa, de achar que te conheço, e aí você não ser você. Como eu ia fazer pra explicar pro meu cérebro que você não era você? Ainda bem que era. Você é inconfundível. Te abracei. Você continuou imóvel. Inerte. Segurando as flores. Forte. Até um espinho te sangrar. Você largou as rosas e parou de tremer. Suas mãos estavam cheias de espinhos. Tudo sangrava. Vem, vamos embora, eu disse. Senti aflição. Você veio. Aliviada.

8.6.10

Lugar comum

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Não é porque eu choro que eu estou triste, não é porque eu sorrio que eu estou feliz, não é porque eu corro que eu sou saudável, não é porque eu não como que eu sou magra. Nem tudo o que parece, é.

Não é porque eu não escrevo que eu não tenho ideias, nem é por falta de ideias que eu não escrevo. Queria querer um monte de coisas, queria não querer outro monte. Não sei se vou ou se fico, mas sei que se ficar agora eu não irei jamais. Não sei se trabalho pra passar o tempo, ou se deixo de trabalhar pra ver o tempo passar. Tem dias em que tudo faz sentido, mas outros em que eu não me encaixo em lugar nenhum. Qual o ponto em trabalhar, quando o que me falta pra viver não é o dinheiro, e sim a vontade? Nem é toda a hora que me falta vontade, mas quando falta, falta pela vida inteira. Então, quando eu tenho, eu me jogo. Como se não houvesse amanhã.

Tem dias em que eu me vejo sozinha com a consciência, e, nesses dias, eu penso que a vida é curta demais pra ser disperdiçada estudando como se eu fosse viver pra sempre. Mas é longa demais pra ser gasta com planos de quem vai morrer amanhã. Eu não quero ter filhos, não tenho um plano de vida longa e próspera, não sei o que é isso. Eu vou morrer algum dia. Bem como você, você e você. E é só nisso que eu consigo pensar ultimamente.

Tem dias em que eu não entendo a sociedade. Todos os outros, ela que não me entende.

7.6.10

Ritual

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Srak wrock wreck, shok shok shok shéw. Kra kra kra -shk.

Rrrrrrrrró ---- ph-u.


... E foi dormir.



4.6.10

Incidente

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Enquanto a loira falsa e feia passava rebolando com sua bandeja e sua bunda 44, procurando um lugar pra sentar, os dois adolescentes que cruzavam a praça de alimentação pararam de andar pra acompanhar sua bunda, fazendo com que as duas mulheres de trás tropeçassem neles, e era uma vez quatro bandejas de almoço. Mas que caralho, pensou o magro. Por que vocês pararam, quis saber a mais prejudicada, cujo sapato agora tinha um ramo de brócolis no lugar do lacinho, furiosa porque tinha planejado encontrar o namorado usando aquele sapato, que combinava com sua calça nova. Ambos se engasgaram, e, na falta de uma explicação plausível, deram de ombros. Pediram desculpas e logo saíram se lamentando, mais pelo lanche perdido, menos pelo estrago, e com uns restos de yakissoba escorrendo pela batata da perna. A faxineira do shopping, que viu toda a cena de perto e já não aguentava mais catar a porquice dos outros aqui e ali, teve vontade de esticar a vassoura com um pouquinho mais de ênfase e passar-lhes acidentalmente uma rasteira, mas, como ainda não tinha terminado de pagar a dúzia de prestações do sofá novo, não podia se dar o luxo de ser mandada embora. Especialmente agora.
Assim sendo, cada qual foi pro seu canto, resmungando - eles de fome, elas de vaidade, ela de rancor-, e a loira, que a essa altura já havia se sentado e começado a comer, continuou lá, feia, falsa e bunduda, sem saber de nada.

2.6.10

Amélia

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Subiu no ônibus atrás de mim, acompanhada por dois caras. Ônibus cheio, sentaram-se na escada. Amélia cochichou-lhes algo que provocou risadas. Depois, com a destreza de uma stripper, agarrou-se no cano do ônibus e chegou ao pé do meu ouvido. Olá. Oi. Tudo bem? Tudo, e você? Tudo ótimo. E quis saber que faculdade eu fazia, quantos anos tinha e qual o meu nome. A um palmo da minha boca. Amélia, prazer. Prazer, você é colega da minha irmã. Ah, sou? Sim, é. Quem é sua irmã? M.O. Aaahh!, a M.! Fiz francês com ela, não faço mais. Pois sim.
Amélia tinha os cabelos loiros, cacheados e armados. Entrou na faculdade só loira, do cabelo curto e liso, tímida, comedida. Passado um ano (ou dois?), agora ela solta, solta como seus cabelos. Certa vez tirara a roupa no estacionamento da história pra tomar sol. Ficara nua, nua em pelo, em pleno horário de almoço, todas as mesas da cantina ocupadas pararam de comer pra assistir Amélia no sol. Se não fosse pelo segurança, 32 graus de sol teriam tingido toda sua brancura.
Você namora, ela quis saber. Namoro. Gosta da sua namorada? Muito. E é fiel? Sim. Nunca pulou a cerca? Jamais. Que pena, ela falou. E foi conversar com a moça da Filosofia, passou-lhe a mão nos cabelos, no rosto, na cintura. Olhos nos olhos. A moça deu bola, mas não tanta. Partiu pro lado de lá da catraca. Os amigos vieram falar comigo, se desculpar. Bobagem. E ela lá, do outro lado, sentou no colo do moço da Economia com aliança no dedo. Pediu um beijo, não conseguiu. Tentou arrancá-lo, também não deu certo.
Adiei o quanto pude pra passar a catraca, mas meu ponto era logo menos e tava lotado. Passei. Amélia veio e, como para muitos outros dali, me pediu um beijo. Disse que não, ela respeitou, me surpreendendo. Tentou mais uma vez a filósofa, nada. Desceu na Paulista, junto dos amigos. Fim de jornada.

Depois de alguns olás pelos corredores, Amélia desapareceu, pra só voltar semana passada. Da forma mais inesperada possível. Me surpreendes, Amélia.