30.4.10

Pretexto

- Olha pra mim e me diz que tudo isso é verdade. Mas olha bem no fundo dos meus olhos, daquele mesmo jeito que você olhou naquele domingo boêmio de julho, e diz. Diz que não sente nada, diz que eu fui um passatempo errante. Diz que sair comigo te cansa a beleza e que você não vê a hora de ir embora daqui, escarrou Marina, pelando a língua no chocolate quente em seguida.

Mas ela não olhou, e nada falou. Simplesmente virou as costas e foi embora, marchando, imponente, pra virar a esquina e desabar no muro de tijolos mijado por gente e por cão. Tentara falar, mas o ar lhe subira até a glote, batera e voltara, não soltando palavra. Não é não, e por que caralhos é que essa gente tem que ser tão teimosa e insistir nas ideias quando sabe que tá certa? Não ficou pra enfrentar porque sabia que toda a vez que engolia as palavras sua reação seguinte era chorar. Em geral com um leve descontrole. Então foi embora.
Fez seu caminho pra casa a pé, passos largos e incertos. O sal das lágrimas fazia suas bochechas coçarem. O chão de repente pareceu tão próximo, e sua cabeça tão pesada, que, não fosse pelo judô, seu nariz jamais seria o mesmo. E que ridículo teria sido se alguém além do velhinho do outro lado da rua estivesse ali pra presenciar. (Antes da catarata, ele teria rido tanto quanto eu ou você.) Seguiu, dessa vez prestando tanta atenção pra não tropeçar na linha que se esqueceu de virar à direita duas quadras depois e só foi perceber na metade do quarteirão. Voltou.
Voltou correndo, correndo além do que seus pulmões normalmente permitiriam. Ofegava, bufava, lutava contra a asma. Encostou a testa no vidro do café. Seus olhos marejaram. Marina ainda estava lá, prostrada atrás do copo de chocolate quente e roçando a ponta da língua no céu da boca. Foi até ela. Levantou-a pelos cotovelos, entrelaçou os dedos atrás do seu pescoço e olhou-a nos olhos. Devorou-a com os olhos, como naquele domingo embriagado. Chegou tão de perto que pode ver que as pupilas dela se dilatavam conforme seu rosto se aproximava. Tête-à-tête, subiu-lhe a mão pela nuca e sentiu os cabelos fazerem cócegas por entre os dedos.

Não queria mais ter de disfarçar tombos pra velhinhos ceguetas.